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Crônica: "Além da Porteira"

Por Léo Borba, jornalista



O Caderno na mesa, o Lápis na mão e o ouvido no rádio.

“Língua Portuguesa. Aula número 7 da segunda fase”. A voz grave e pausada do locutor prendia a atenção da mulher. Em silêncio, no calor do fogão a lenha, ouvia. À luz do lampião, anotava. Assuntava. A louça do jantar esperava na pia. O marido no galpão, um filho no quarto, outro no ventre.

“Um dia vou viver o mundo além da porteira”. Promessa de menina, dos tempos de escola e das lides da fazenda onde o pai era capataz. Propriedade de milhão de campos. Ali perto ficava a escola onde terminara os primeiros anos. Se mais quisesse, e queria, tinha que ir pra cidade. Mas era longe. Na juventude, conheceu o garoto que jogava no time da vila. Para o casamento, levou o enxoval, o amor e a promessa. A limpeza da casa, ordenha das vacas, almoço, plantio da horta e lavação de roupas eram atividades que se entreamavam nos dias da pequena propriedade. Um mundo do lado de dentro da porteira. Além dele, as notícias que chegavam pelo rádio à pilha. Um dia, ao final do programa A Voz do Brasil, esfregando os pratos, ouviu a chamada do Projeto Minerva. Programa de ensino à distância do então “Governo Militar”. Decidiu “se inscrever”. O saber, se mais quisesse, e queria, chegava pelo rádio. Desde então, a louça passou a esperar. Na garupa da gravidez, gestou os conhecimentos. Terminada a amamentação, alimentou-se de confiança e enfrentou as provas do Exame Supletivo. Poderia eliminar uma matéria de cada vez. Inscreveu-se em todas, como quem contrata uma empreitada de capina. Aprovada! Mas não se deu por satisfeita. Tinha gosto pelo sítio, mas queria viver a vida do outro lado da porteira! Voltou às noites de caderno na mesa, lápis na mão e ouvido no rádio. Da cidade, o marido trazia as compras de casa, os livros e apostilas. Empreitada maior, mais ferramentas. As provas do segundo grau seriam dali a seis meses. A propriedade crescia. Novas vacas, mais ordenhas. Venda de leite, produção de queijos. Cresciam, também, os piás. Camas, comida, roupas lavadas. Trabalho e sorrisos durante o dia; à noite, estudos ao som do rádio. No início do ano seguinte, na companhia do marido, foi à secretaria do colégio buscar o Certificado de Conclusão do Segundo Grau. -Agora, vamos morar na cidade. – decretou o marido, na volta pra casa. –Além de você, os piás também vão precisar de escola. Formada em Pedagogia e concursada pelo estado, escolheu lecionar no interior. Nos fins de semana, todos no sítio, nas ordenhas e nos queijos. -Está na hora de voltar. – Disse ela ao marido. Um sorriso nos lábios, o documento da aposentadoria na mão. Na varanda da casa, de mãos dadas, observam os netos a brincar no gramado, à luz do entardecer que ilumina a porteira.

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